A forte presença africana caracteriza a semifinal da Copa do Mundo do Qatar entre França e Marrocos, hoje, às 16h (da Bahia), no estádio Al Bayt. Trata-se de um jogo com relações históricas e identificações distintas. De um lado, um país europeu, colonizador, e que tem a maior parte dos seus jogadores com ascendência africana. E, do outro, a primeira seleção africana em uma semifinal, com um percurso contagiante no mundial.
De todos os jogadores das duas equipes, 43 têm o continente africano como berço de nascimento ou familiar. O Marrocos, país do Norte da África, tem cultura árabe e religião islâmica, enquanto a França ainda é destino de diversos jovens africanos, sobretudo de países que compartilham o idioma por conta da colonização, em busca de melhores condições de vida.
Na Bahia, as culturas afrodiaspóricas são centrais no cotidiano das pessoas, na música, na comida, no jeito de se comunicar e em outras esferas da vida. Em Salvador, o que a filósofa, antropóloga e professora Lélia González (1935-1994) intitulou de Amefricanidade, “uma experiência histórica comum” e que revela “a presença negra na construção cultural do continente americano”, se faz visível em diversos lugares.
Na partida entre Marrocos e França, em razão da complexidade dos processos históricos nos dois países e em seus vínculos distintos com a Bahia, essa dinâmica não se desdobra em uma torcida incontestável para nenhum dos dois, mas geralmente traz muitas nuances.
O tema é “denso, ambíguo e complicado”, como destacou uma das fontes, que não quis se posicionar publicamente sobre o assunto. Há tanto as violências da colonização, escravização e do racismo quanto dinâmicas étnicas distintas, e que foram mudando, na relação com os territórios, ao longo do tempo.
“A identificação não é perfeita. Marrocos leva a cultura da África do Norte, enquanto aqui temos uma identificação maior com países da África Subsariana. Mas a França carrega a representação do colonialismo, o que me faz rejeitar torcer por ela. Mesmo que tenha muitos jogadores de ascendência africana, vejo neles a turma que não aceita as danças brasileiras”, afirma o jornalista e pesquisador Marcelo Argôlo, criador do projeto Pop Negro BA sobre música pop e negritude, torcedor do Marrocos neste caso.
As ligações africanas da seleção francesa são parte da história de alguns dos seus principais jogadores, a exemplo do craque Mbappé e de Dembélé, com ascendências da Argélia e Camarões, e da Mauritânia, do Senegal e Mali, respectivamente. Já o lateral Koundé tem suas origens no Benin, que, segundo Cleidiana Ramos, jornalista e doutora em antropologia, tem identificação muito forte com a Bahia. “O atual território do Benin nos deu uma das mais fortes heranças, sobretudo religiosas. Temos uma das grandes tradições do candomblé, a jeje, que é originária de civilizações que vieram de lá”, explica.
Essa conexão cultural e histórica é vivida em Salvador pelo beninense Adéchina Padonou, professor de francês e da língua fongbè, do Benin. Ele sublinha que, no confronto de hoje, vai se abster. O primeiro porque é o país colonizador do Benin, com histórico de relações opressoras e de exploração. E não apoia o segundo por rivalidade. Ele acusa os marroquinos de ofensas racistas aos beninenses após jogo pela Copa Africana em 2019.
“Falando da África do Norte, se fosse Egito ou Argélia, eu torceria. Mas Marrocos nunca”, afirma e, em seguida, acrescenta: “a França fica como última opção”. Essa perspectiva é reforçada por Boris Vidjinnagni, estudante de medicina, também nascido no Benin e morador de Salvador. “É complicado escolher um dos dois. A França nos colonizou. E o Marrocos, quando venceu a partida passada, os jogadores falaram que a vitória era para o povo do Marrocos e as pessoas muçulmanas. Não falaram da África”, pondera.
Apoio e preparação
O apoio que os marroquinos têm recebido no Qatar foi tema da entrevista do técnico francês Didier Deschamps. Ele afirmou que a equipe está preparada para lidar com a pressão. “Sabemos que a torcida vai cantar muito e estamos prontos para isso. É bom para eles. Temos que nos preparar para o jogo e para o ambiente”, falou.
Ambas as seleções não devem ter surpresas na escalação. O provável é que os técnicos escolham entrar em campo com a mesma base da equipe titular das últimas partidas.
Entretanto, no caso do Marrocos, a equipe não deve contar, mais uma vez, com o zagueiro Aguerd, por lesão. Já o também defensor Saïss, que saiu sentindo a coxa contra Portugal, deve ser reavaliado antes da partida. O lateral Hakimi fez apenas um treino leve, mas deve atuar.
Os possíveis desfalques preocupam o técnico Walid Regragui, que comanda a melhor defesa da Copa do Qatar, com apenas um gol sofrido em cinco jogos. Ele não garantiu a participação ou ausência de qualquer jogador em entrevista, ontem.
O confronto entre França e Marrocos deve ser uma daquelas partidas movimentadas, com muitos contra-ataques rápidos – característica das duas equipes. A equipe africana tem a força de sua zaga, técnica e velocidade. A França, por sua vez, tem o poder de um ataque com Mbappé, Dembélé, Griezmann e Giroud.
A torcida, no Qatar, estará do do lado de Marrocos.
Aqui na Bahia não deve ser muito diferente. Ainda que com ponderações e
apontamento das contradições, a tendência é para um apoio maior aos
marroquinos, principalmente pelo primeiro título de uma seleção africana
na Copa do Mundo. *AT/Esportes
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