Cidades enfrentam colapso na rede de medicamentos básica na Bahia

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Cidades enfrentam colapso na rede de medicamentos básica na Bahia

Roque Batista quase pode se considerar um homem de sorte. Portador de hipertensão severa, analfabeto, desempregado e sem recursos, pelos menos mora colado a uma farmácia pública, mantida e abastecida pela prefeitura e pelos governos estadual e federal. Mas na pequena Elísio Medrado, cidade do Recôncavo com cerca de 8 mil habitantes, não dá para contar muito com ela. Nem com a imensa maioria das unidades espalhadas nos 417 municípios baianos, que enfrentam uma grave crise no fornecimento de medicamentos para a população mais carente.

Estoques zerados, ou perto disso, de remédios para doenças de risco, como hipertensão, diabetes e infecções respiratórias. Atrasos na distribuição de medicamentos, alguns deles de uso controlado, que deveriam ser entregues com regularidade a portadores de distúrbios psiquiátricos.

Lotes perto do vencimento da validade que são repassados pelo governo estadual às farmácias municipais, numa lista que vai de anticoncepcionais a anti-inflamatórios. Foi esse o cenário que o CORREIO encontrou durante visita a 15 cidades do interior na primeira semana de agosto.Relatos de pacientes, secretários de saúde, profissionais da área médica e servidores responsáveis pela distribuição de remédios confirmam um colapso na assistência farmacêutica da Bahia que já se arrasta desde o fim do ano passado e afeta a chamada atenção básica - a porta de entrada do SUS, considerada por especialistas como o mais importante e estratégico pedaço da pirâmide da saúde pública.
Cenas da crise: postos com estoques zerados em Santo Antônio de Jesus e Amargosa(Foto: Betto Jr)
Já a caminho da primeira parada da reportagem - Santo Antônio de Jesus, 190 quilômetros de Salvador -, vê-se, ou melhor, ouve-se que caos na saúde é assunto do momento. Nos estúdios da Rádio Mix, de Conceição do Jacuipe, às margens da BR-101, o locutor Jimycley Araújo acusa a prefeita, Normélia Rocha (PRB), de sucatear o SUS na cidade, de atrasar por meses os salários de quatro médicos cubanos, de deixar pacientes voltarem sem remédio das farmácias instaladas nos postos do Programa Saúde da Família (PSF).

Recôncavo
Das ondas do rádio para o Alto de Santo Antônio, na periferia do município homônimo, o maior do Recôncavo. São 15h40 do dia 3 e o posto de saúde do bairro está fechado. “É assim por vida. Tem novidade não. Agora mesmo, está sem a médica. É uma dessas gringas. Chegou tem pouco tempo e tirou férias, veja só. Fazer uma consulta aqui é um suplício.

Dentista e enfermeira até que vêm, mas elas trabalham mais pela manhã”, diz a costureira Isabel Silva, 23 anos, que mora em frente à unidade. Ela aumenta o tom de indignação ao ser questionada sobre medicamentos.

“Se falta material de higiene para limpar o posto, como é que vai ter remédio sempre? Minha mãe mesmo é idosa e hipertensa. Faz cinco meses que ela procura e não acha dois remédios que toma, a Losartana potássica e o AAS”, afirma.
Cenas da crise: postos com estoques zerados em Santo Antônio de Jesus e Amargosa(Foto: Betto Jr)
O primeiro é usado apenas para tratar a hipertensão. O segundo, cientificamente conhecido como ácido acetilsalicílico, é um anti-inflamatório com propriedades analgésicas utilizado como coadjuvante nos tratamentos para reduzir pressão arterial.

Ambos deveriam ter o fornecimento assegurado diretamente pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesab) ao município. Mas não têm. Segundo a costureira Isabel, faltam também boa parte do elenco dos cerca de 350 itens que compõem a assistência farmacêutica para a atenção básica. “A gente procura remédio pra dor de cabeça, febre, problema de estômago, verme, e na maioria da vezes não acha. Volte aqui de manhã que dá pra entender melhor do que eu tô falando”, indica.

No dia seguinte, 7h, o posto continuava fechado, embora um informe colado na fachada avisasse: “Horário de funcionamento - 7h às 16h”. Vinte minutos depois, nada. Às 7h35 chega a atendente e libera a entrada para os 15 pacientes que aguardavam em frente ao portão. Entre eles, estava Calixto Souza, 79 anos, também hipertenso.

“O povo aqui é gente boa. Recebe a gente bem, mas não tem nada. Nem médico nem remédio. Ontem mesmo, vim buscar, mas não tinha o que eu tomo”, afirma.

O Maleato de Enalapril de 20 miligramas, usado por seu Calixto para controle da pressão arterial, é um dos medicamentos em falta no posto do Alto de Santo Antônio. Na porta da sala onde ficam estocados os medicamentos, a enfermeira Maísa Silva, coordenadora da unidade, garante que há regularidade no fornecimento de substâncias importantes para parte dos programas tocados conjuntamente por prefeitura, governo e Ministério da Saúde.
Usuária que se queixa de comprar remédio que deveria ser gratuito(Foto: Betto Jr)
“Não falta insulina nem medicamentos importantes para diabetes, como Glibencamida e Cloridrato de metformina. Mas há, sim, carências”, admite. Em uma rápida olhada no almoxarifado do posto, é possível ver caixas vazias de AAS, Eritromicina (antibacteriano), Furosemida (diurético e anti-hipertensivo), Mebendazol (antiparasitário), Cefalexina e Benzetacil injetável, ambos antibióticos largamente utilizados para combate a infecções.

Vazio Cerca de 50 quilômetros dali, em Amargosa, os postos de saúde novos, limpos e bem estruturados contrastam com o vazio nos estoques voltados à assistência farmacêutica da atenção básica.

Nos setores de armazenamento, há gôndolas vazias, de antibióticos a medicamentos para doenças na tireoide. Coordenador da Unidade de Saúde da Família do bairro Santa Rita, Fábio Rodrigues Régis atribui a deficiência à falta de regularidade na distribuição da Sesab para o município.

Régis destaca sobretudo os remédios do elenco de hiperdia (hipertensão e diabetes) e anticoncepcionais injetáveis. “E olhe que aqui é uma unidade de atenção básica para mais de 4 mil pessoas”, diz. Número de habitantes que é metade do total da população de Elísio Medrado, cidade natal de Roque Batista, personagem que abre esta reportagem.

Às 11h da manhã, a farmácia pública da cidade está fechada. “É assim. Meu remédio (Maleato de Enalapril), eu tenho que comprar. Nunca tem. Custa R$ 17 e dá para 15 dias. Se colocar esse dinheiro em comida, daria para encher a barriga uns dias. Daria...”, lamenta.
Governo recebe por municípios, mas não repassa
Tinha tudo para ser uma revolução na atenção básica e um grande negócio para os municípios. Em 2006, o Ministério da Saúde baixou portaria que incluiu na conta do SUS o fornecimento de centenas de remédios. Pelas regras, a União arcaria com 50% da fatura. Já prefeituras e governos estaduais bancariam, cada um, 25%. No rastro da nova política, a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) apresentou aos municípios uma proposta com potencial para ampliar a distribuição gratuita de medicamentos na rede de atenção básica.

Em síntese, a Sesab se colocou à disposição dos municípios para receber os 50% repassados todo mês a eles pela União e, em troca, centralizar a compra e distribuição de remédios no valor correspondente ao que as prefeituras tinham direito. Somados, claro, os 25% devidos pelo governo do estado. O argumento era mais que válido: com volume maior de recursos, era possível comprar mais por bem menos. S

em falar que os municípios ficariam livres de lidar com licitações e com a recusa dos laboratórios em participar de pregões com baixo volume de venda. No total, 289 de 417 prefeituras aceitaram o pacto e deixaram que o estado gerisse grande parte da distribuição de remédios, através da Central Farmacêutica da Bahia (Cefarba).

A eles, cabia garantir os 25%, parte prevista em lei. No total, a União garante R$ 5,10 por habitante ao ano, já governo do estado e prefeitura arcam com R$ 2,36 cada. Atualmente, a Sesab tem em caixa um orçamento anual de R$ 60 milhões para comprar e repassar medicamentos da atenção básica.

“A centralização permite melhor preço. Por isso, era certo optar por esse modelo, devido à economia de escopo. Em alguns casos, a redução era de até 10 vezes. Não se esperava que houvesse problemas, que tornaram a situação bastante difícil para as prefeituras, embora isso exista há muito tempo”, afirma o médico Raul Molina, secretário de Saúde de Sapeaçu e presidente do Conselho Estadual dos Secretários Municipais de Saúde (Cosems-BA). Fonte: Correio 24h